Rodrigo Seefeldt

Sabor de erva-mate

Por Rodrigo Seefeldt

Lembro-me ao longe das manhãs frias de inverno, quando juntos cevávamos um bom chimarrão, em uma casa simples e pequena, mas recheada de memórias e com cheiro da lenha queimando no fogão. Talvez ainda o velho amigo Badico, mesmo prejudicado da idade e por problemas de saúde, escutava ao longe os cavalos correndo no campo e alisava os dedos da mão, pensando que o cigarro estava aceso.

Em boa parte da minha infância morando no campo, tive a oportunidade de conviver com um bom amigo apelidado de Badico, nunca descobri seu nome e nem sobrenome, mas me contava muitas estórias de campos assombrados.

Badico era domador e campeiro, amigo da família e morava conosco. Meu avô o considerava fiel companheiro. Ele tinha a tarefa de alimentar e cuidar dos animais e era responsável pela doma dos cavalos para correr as chamadas pencas.

Meus avôs contavam que Badico havia sido resgatado e acolhido pela nossa família, pois sua família de sangue era distante. Ainda em detalhes relatavam que o forte Badico tinha caminhado mais de 60 quilômetros com sua mala de garupa e apenas os “panos de bunda”, como ele mesmo se referia a suas próprias roupas, até chegar à região e então chamado pelo meu avô para ser o responsável pela bicharada.

Os anos se passaram e a idade também chegou para nosso amigo Badico, que já estava aposentado e longe das atividades rotineiras. Em um determinado dia, foi achado caído e passando mal. Era o início de uma doença que o fez perder os movimentos do braço direito e o deixou com dificuldades de caminhar. Em suas preocupações, a mais latente era de que não poderia mais servir o próprio chimarrão.

Neste momento, todos os cuidados da família estavam direcionados ao amigo Badico, que já estava em sua nova residência ou, como ele dizia, um rancho novo. Estava bem acomodado e sempre acompanhado do seu velho violão da marca Di Giorgio, que a bem da verdade nunca o ouvi tocar.

O Badico tentou tomar o chimarrão diário, mas devido às limitações no braço, não conseguia. Foi um dilema. Ele, mesmo triste, já considerava a possibilidade de desistir de cevar um amargo todas as manhãs. Então, nesse momento eu recebi o título, ou melhor, dizendo, a função de servir o chimarrão ao meu amigo Badico. E todas as manhãs, fizesse chuva ou sol, estávamos juntos.

Por vários anos dividíamos nossos inícios de manhãs cevando um chimarrão, minha missão inicial era apenas servir a água quente na cuia e alcançar para ele. Depois de alguns dias já tomávamos chimarrão juntos tranquilamente.

O Badico, velho e bom amigo, conviveu com nossa família por mais de 20 anos e depois retornou para sua família de sangue, me deixando de herança sua única relíquia, o violão. Os anos se passaram e atualmente é impossível não lembrar do velho amigo em cada chimarrão cevado. A saudade aparece numa lembrança boa de uma infância com sabor de erva mate.

Texto originalmente publicado no livro “Contos Aleatórios” da Pragmatha Editora (2023).​

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